quinta-feira, 27 de junho de 2013

Conto - Os índios de Cascavel

Trago essa história em homenagem a uma amiga que mora em Cascavel, PR.



Sempre vivi uma vida muito reclusa. Nasci nesta cidade no interior do Paraná, Cascavel. O nome da cidade nunca me agradou. Desde pequeno eu imaginava que a cidade onde eu havia nascido fora construída dentro da carcaça de uma enorme cobra, que um dia voltaria à vida e engoliria todos nós. Obviamente isso nunca aconteceu. Nada nunca aconteceu comigo. Nada de extraordinário. Aos 13 anos meu rosto se infestou de espinhas. Sempre tive muita vergonha, por isso, me isolei. Eu sabia que todos riam de mim, e minha mãe, por falta de dinheiro e também pela ignorância, nunca cogitou a possibilidade de pagar um tratamento para espinhas para mim. Nunca me importei muito. Sendo assim, terminei o colegial sem ter feito muitos amigos, e logo após a formatura, a qual inclusive eu não compareci à festa, meu avô apareceu em minha casa com uma boa notícia. Para ele.

Meu avô era um homem que nunca havia lido um único livro em sua vida, mas era muito experiente e sabia conversar sobre todos os tipos de assuntos. Quando pequeno, me lembro de ouvi-lo contando uma história para meu irmão menor, Nicolas, sobre uma tribo de índios que havia habitado nossa cidade antes mesmo de ela se chamar Cascavel. Ele dizia que uma mulher com cabeça de coruja tomava conta dos índios, até o dia em que nós, os brancos, invadimos o território deles e os matamos dos jeitos mais cruéis possíveis. Ele dizia que a mulher com cabeça de coruja se escondeu em uma caverna, e lá dentro fez um feitiço para que um dia todos os índios voltassem e devorassem as pernas dos brancos enquanto eles dormiam. Eu morria de medo dessa história, e passei muitas noites acordado, suando frio e desejando que o Sol aparecesse logo. Nicolas por outro lado, morria de rir e pedia para que ele contasse a história repetidas vezes em um único dia.

A notícia que meu avô viera me dar naquele dia era a seguinte: Ele havia comprado o único açougue que havia na cidade naquela época, e veio me oferecer o emprego de ajudante de açougueiro. Minha mãe, claro, ficou animadíssima, mas eu, nem tanto. Senti-me tão minúsculo. Até meu avô sabia que eu era um pobre coitado. Aceitei o emprego.

Levantava-me todos os dias, de segunda a domingo, às 4 da manhã. O cheiro da carne fresca, sangue fresco e todas aquelas cabeças de gado penduradas em ganchos enferrujados, me causavam uma estranha alegria na alma. Eu gostava daquilo.

Demorei a aprender a cortar a carne do jeito certo.

Os anos se passaram, e eu, na época com 30 anos, continuava solteiro e vivendo com a minha mãe. Meu irmão Nicolas, havia se casado com uma garota de São Paulo. Minha mãe, a cada dia me causava mais nojo. Ela já havia perdido todos os dentes, raramente tomava banho, e eu podia ver as caspas que se acumulavam no seu cabelo. Tinha nojo dela.

Uma noite, voltando para casa umas 10 da noite, eu estava caminhando pela mesma rua que passava todos os dias, quando uma casa me chamou a atenção. Uma casa muito grande e muito, muito antiga. Pelo jeito ela sempre esteve lá, mas assim como muitas coisas na vida, nós só notamos em certo momento. Parei em frente a ela. Ela era toda de madeira pintada de branco. Suas janelas davam de frente para a rua e eram enormes. Deduzi que ali seriam os quartos. Era um sobrado. O portão da frente estava semiaberto, e a porta de entrada era também de madeira, mas aparentava ser bem mais recente do que o resto da casa.  Fui embora.

Cheguei em casa e fui direto para o meu quarto . Minhas unhas estavam com sangue seco embaixo delas.
No dia seguinte, me levantei e a primeira coisa de que me lembrei de  foi da casa . Parei em frente a ela novamente, e dessa vez, alguém apareceu.

Era uma jovem muito bonita. Eu nunca havia visto alguém tão lindo quanto ela. Pele morena, cabelos pretos e longos, magra e mais alta do que eu. Ela estava varrendo a calçada. Eu estava tão encantado que não tive como disfarçar; a olhei indiscretamente. Ela, percebendo a baba escorrendo pelo canto da minha boca, disse:

_ Você trabalha no açougue?

_ Sim.

_ Será que posso lhe pedir um favor?

_ Claro .

_ Sei que você passa por aqui umas 11 horas, não é isso? Será que seria muito incômodo lhe pedir para que me trouxesse meio quilo de patinho? Eu não posso sair de casa. Minha mãe é doente. Normalmente minha vizinha faz esse tipo de coisa para mim, mas ela está internada. Eu lhe dou o dinheiro agora.

Senti-me explodir de felicidade . Eu traria todas as carnes do açougue para ela se ela me pedisse. Deu-me cinco cruzeiros:

_ Está bem, eu lhe chamo quando chegar.

_ Não precisa, estarei aqui fora - E sorriu .

Despedi-me e segui meu caminho. Estava tão feliz que não me dei conta de que ela estava varrendo a calçadas às quatro e meia da manhã.

Nesse dia, o tempo voou. Não parei de pensar nela. Tão linda. Fiz muitos planos. Um deles incluía dizer a ela que eu lhe traria a carne que precisasse todos os dias. Aos poucos nos tornaríamos amigos, e quem sabe um dia, pudéssemos nos casar. Quando eu me lembrava das costas dela desnudas, do calcanhar fino com uma fitinha vermelha em volta e dos cabelos longos até a cintura, sentia meu rosto e outra parte do meu corpo queimarem. Cortei o melhor pedaço de patinho, e claro, coloquei mais de meio quilo.

Caminhando até a casa dela, eu senti uma coceira muito forte no dedinho do pé. Era tão intensa que tive de me sentar na calçada, tirar as botas de açougueiro e coçá-lo. Senti um aperto no peito. Levantei-me e continuei a caminhar.

Ela estava me esperando em frente à casa :

_ Olá! Sabia que você não iria demorar. Entre, eu preparei um café.

Não pude resistir e entrei.

A casa tinha cheiro de formol e havia pouquíssimos móveis. Perguntei-me como uma pessoa com dinheiro para comprar aquela casa não teria para os móveis. Ela me disse para esperar por ela na sala. Sentei-me no sofá marrom e todo arranhado. Deduzi que ela tinha um gato.

Passado algum tempo, eu estava começando a me sentir sonolento, quando ela apareceu. Duas xícaras pequenas e transparentes nas mãos:

_ Aqui está seu café.

Ela sentou-se ao meu lado e pude sentir sua coxa encostar-se à minha:

_ Você gosta de fantasias? – ela me perguntou .

_ Acho que sim... Sim, gosto, claro. – respondi sem entender.

_ Então quero lhe mostrar uma coisa, espere aqui. – colocou a xícara com café no chão e subiu correndo as escadas.

Nesse ponto, eu já estava me sentindo desconfortável , por algum motivo não estava gostando daquela situação . Eis que ela desceu a escada.

Ela havia colocado em sua cabeça uma espécie de cabeça empalhada de uma coruja, era como aquelas fantasias de carnaval. Ela também havia tirado suas roupas e estava completamente nua.

Dei um pulo do sofá derrubando o café quente no meu colo . Mal senti dor alguma. Corri em direção à porta, e quando dei por mim, a porta estava fechada:

_ Venha cá, sente-se comigo – disse ela enquanto posicionava velas verdes em círculos no chão.

Estava me sentindo muito mal, olhei em volta e notei que não haviam portas e nem janelas onde eu estava , somente aquela sala . Reparei que no lugar das unhas, ela agora possuía garras.

Senti uma forte pontada de dor no meu pé direito, e quando me abaixei para ver o que havia acontecido, só pude ver sangue, muito sangue nas minhas botas.

Rapidamente ela me puxou pelos pés e arrancou o outro dedo do meu pé, eu gritava de um jeito tão animalesco que tinha certeza de que alguém me ouviria:

_ Por favor, pare de gritar e sente-se comigo – disse ela com os dois dedos dos meus pés em suas mãos.
Sentei-me. Não havia mais o que fazer. Eu não sentia mais nada, e foi quando me lembrei da história do meu avô.

Sentei-me no meio do círculo de velas, enquanto ela, ou seja, lá o que aquilo fosse, dizia em voz alta algum tipo de oração. Hoje em dia sei que o que ela estava dizendo era em guarani, mas na época aquilo soava alienígena para mim.

Senti uma onda de calor percorrendo o meu corpo, e uma dormência muito forte no topo da minha cabeça. Desmaiei e depois disso acordei na calçada.

Abri os olhos e vi muitas pessoas me olhando e pude ouvir o barulho da sirene da ambulância. Eu de fato havia perdido um dedo de cada pé, e me disseram que eu havia sido atropelado.

Nunca contei essa história a ninguém. Após ter me recuperado alguns meses depois, resolvi passar em frente à casa onde tudo acontecera . Para minha surpresa, não havia nada lá, apenas restos do que um dia foi uma casa. Perguntei para os vizinhos e eles me disseram que nunca houve uma casa lá, somente os restos.

Após alguns anos do ocorrido, as pessoas começaram a comentar sobre crianças que estavam desaparecendo nos bosques que haviam na cidade . Lembro-me de ter visto até o exército por aquelas bandas, mas nunca nos foi dito o que acontecia realmente lá. Uma vez, meu irmão Nicolas voltou para Cascavel para nos visitar, e trouxe consigo seu filho Mateus de oito anos. Durante uma tarde, me lembro de que o Mateus havia sumido. Meu irmão ficou desesperado e chegou a chamar a polícia. Realizaram uma busca rigorosa nos bosques, mas não o acharam, e dois dias depois, Mateus voltou, e com uma história para contar.

É claro que ninguém acreditou nele, acharam que ele havia fugido com alguns meninos da vizinhança e inventou essa história para não ficar de castigo, mas eis o que ele contou:

“Eu e os filhos da Dona Bela estávamos brincando de esconde-esconde no bosque ali do lado da casa deles. De repente ouvimos um tipo de música e tambores e fomos ver o que era. Ficamos observando de longe um monte de índios dançando em volta de uma coruja. Eles estavam comendo pés, pés de gente! Ficamos com muito medo de nos mexermos então ficamos lá até ter certeza de que todos haviam ido embora. A dança deles durou um dia e mais um pouco.”

Fonte: Assombrado

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